Arte conceitual de Disco Elysium. Créditos: Aleksander Rostov

Eu, eu mesmo e o outro; todos a serem descobertos

Notas sobre liberdade ética e introspecção em Disco Elysium

Vítor M. Costa
10 min readDec 13, 2020

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Uma obra de arte é um canto de criação visto através de um temperamento. (Mes haines [Meus ódios], Émile Zola)

Se suas faculdades físicas e mentais (como lógica, resistência física, percepção visual etc.) ganhassem forma e voz dentro de você, com que elas se pareceriam? E como seria discutir e escolher sobre as mais diferentes sugestões de seus ímpetos pessoais (por autoridade, por empatia etc.), mas que agora também teriam, literalmente, voz em suas decisões?

Conceitualmente falando, talvez isso não fizesse tanta diferença na vida real. Afinal, esse tipo de diálogo introspectivo com vários “eus” quiçá apenas explicitasse linguisticamente um real e acalorado debate introspectivo que todos nós já fazemos no dia-a-dia, embora em nível não-linguístico.

Contudo, essa ideia, quando implementada em uma ficção interativa, ocasiona uma profunda mudança na experiência de imersão em um personagem fictício, principalmente se esse personagem (sob controle do jogador) gozar de uma relativa liberdade, dentro do respectivo mundo ficcional, para tomar decisões das mais variadas, muitas das quais de natureza ética. Esse é o caso de Disco Elysium (2019) da ZA/UM e, neste texto de comentário, falarei um pouco sobre o impacto e a execução dessa ideia para oferecer uma inovadora experiência imersiva e de liberdade ético-ficcional.

Antes de prosseguir, há uma boa playlist no Spotify, Disco Elysium OST, com parte da trilha sonora do jogo (seleção de Benjamin Donnelly); algumas das músicas podem acompanhar bem esta leitura.

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Comentários iniciais (apresentação)

Disco Elysium é um jogo independente (indie) desenvolvido e publicado em 2019 pela ZA/UM com direção de arte de Aleksander Rostov, trilha sonora da banda britânica de rock alternativo British Sea Power e com design e roteiro do escritor carélio-estoniano Robert Kurvitz.

Após seu lançamento, Disco Elysium angariou muitos prêmios, dentre os quais, quatro no The Game Awards 2019 e três no British Academy Games Awards de 2020, e ficou com uma média de 91/100 nas reviews mundiais, com premiações e elogios especialmente às suas mecânicas de RPG e à sua riqueza de humor e profundidade narrativas. Por outro lado, recebeu algumas poucas críticas negativas especialmente centradas no tom e na progressão de certos diálogos, nas aplicações de rolagens de dados e na falta de carisma de alguns personagens.

De gênero Role-playing game (RPG), o jogo possui algumas mecânicas típicas que remontam ao RPG de mesa Dungeons & Dragons. Por exemplo: árvores de diálogo; ações com cálculo de probabilidade em lance de dados; e gerenciamento da economia interna de um personagem, como pontos de experiência, dinheiro, habilidades e inventário (com itens, roupas, ferramentas etc.).

Por outro lado, o jogo também incorpora, na exploração de um pequeno mundo aberto, elementos de point-and-click (comuns em jogos de adventure) e traz, de forma bastante original, mecânicas de interação narrativa que fazem os “combates” — se é que assim podem ser chamados — se resumirem a disputas retóricas entre o jogador, as suas faculdades físicas e mentais e os personagens e/ou objetos ficcionais com os quais interage.

Figura 1. Menu com uma ficha de faculdades físicas e mentais em Disco Elysium. Créditos: ZA/UM
Figura 2. Imagem de Disco Elysium em um momento de conversa com René Arnoux. Na ocasião, o jogador também dialoga com duas de suas faculdades mentais (Drama e Lógica). Créditos: ZA/UM
Figura 3. “Rosetta 2” (2005–2006), óleo sobre papel, de Jenny Saville.

Quanto à trilha sonora de Disco Elysium, há quase sempre alguma música suave com traços de pós-punk.

O visual do jogo, por sua vez, em perspectiva isométrica, apresenta, com traços realísticos e pouco dinâmicos, uma pequena e conturbada cidade ilhada.

A cidade é governada por uma coalizão estrangeira após um processo revolucionário; trazendo muitas referências aos anos 70 do oriente europeu.

Ainda quanto ao visual, os diálogos e o menu de habilidades são invadidos por retratos expressivamente desfigurados dos personagens trama (ou de faculdades físicas e mentais do protagonista) com conceitos, pinceladas e cores de clara inspiração em pinturas como as de Rembrandt, Ilya Repin, Alex Kanevsky e Jenny Saville. Para além dos retratos, essas influências também podem ser percebidas em outros lugares, como na iluminação de certas cenas, em fotografias, reflexos no espelho.

Quanto à ambientação, passa-se no universo de realismo fantástico Elysium do livro Ar sagrado e terrível (em estoniano: “Püha ja õudne lõhn”), também escrito por Robert Kurvitz, publicado em 2013, e com alguma influência de steampunk e ficções científicas como as de China Miéville e as dos irmãos Arkady e Boris Strugatsky.

Figura 4. Imagem do início de Planescape: Torment, onde o protagonista sem nome (The Nameless One), acorda sem lembrar de nada sobre quem é ou seu passado, assim como em Disco Elysium. Créditos: Interplay Entertainment

Na trama de Disco Elysium, há também uma forte inspiração no clássico Planescape: Torment (1999) da Black Isle Studios. Esse que foi um dos principais títulos da era de ouro dos RPGs de computador (CRPGs); especialmente elogiado pelo refinamento de suas árvores de diálogo e por seu foco em uma narrativa profunda e imersiva.

Entretanto, para além desse clássico CRPG, Disco Elysium elabora, de forma peculiar, uma ficção de detetive com elementos que remetem a investigações criminais como as dos livros de Dashiell Hammet e a programas de TV como The Wire. Por fim, várias linhas de diálogo do jogo são marcadas por reflexões acerca da miséria da condição humana ao estilo do naturalista francês Émile Zola.

Figura 5. Imagem de quando o protagonista reconstrói e analisa parte do contexto por trás do assassinato. Créditos: ZA/UM

A história começa com o jogador assumindo o controle de um detetive alcóolatra com crise de meia-idade desmaiado em seu apartamento após uma reflexão delirante a partir da qual despertou com uma amnésia profunda.

Sem lembrar nem mesmo seu próprio nome, o protagonista logo percebe-se no meio de uma investigação sobre um assassinato junto de seu parceiro, tenente Kim Kitsuragi, em uma ilha povoada por disputas políticas de ideologias extremistas e diversas: fascistas, comunistas e ultraliberais, a depender do personagem que você encontre no caminho.

Ao buscar testemunhas e evidências, o jogador logo se vê, no meio da investigação, metido também em vários assuntos direta ou indiretamente relacionados ao caso, como uma greve de trabalhadores e uma possível rota de tráfico de drogas. Assim, ao longo da história, o jogador não só irá desvendando o assassinato, mas também várias coisas que ocorrem naquela cidade e, principalmente, sua própria identidade, suas convicções e seu passado, podendo recuperar suas memórias de modo progressivo, fragmentado e nem sempre de maneira clara.

Liberdade ética e introspecção em Revachol

Como já afirmou Robert Kurvitz acerca do termo ‘Disco’, no título do jogo, esse não apenas remete à cultura material que orbita a música disco, como a calça boca-de-sino vestida pelo protagonista, mas também remete ao latim “eu aprendo”. Nada mais apropriado, uma vez que o jogo poderia muito bem ser resumido como, de um modo geral, um aprendizado sobre as falhas humanas e, de um modo mais particular, um progressivo aprendizado do protagonista sobre si mesmo, os outros humanos e como lidar com ambos.

Os temas da liberdade e da introspecção para escolhas éticas e pessoais estão no cerne da obra, sendo muito proveitoso, para seu entendimento, refletir sobre a execução do entrelaçamento desses conceitos; eis nosso objetivo a partir daqui.

Ironicamente, o ‘Elysium’ no título está muito distante dos paradisíacos Campos Elísios da mitologia grega, onde descansariam heróis virtuosos após a morte. O mundo Elysium do jogo está mais próximo de nossa conhecida Terra, com típicos conflitos e interesses políticos e econômicos, uma quantidade de habitantes de cerca de 4, 6 bilhões e oito mil anos de história escrita.

Figura 6. Imagem em que o jogador encontra trabalhadores de uma fábrica local que protestam para voltarem ao trabalho, pois sindicalistas querem mantê-los em greve para negociarem maior espaço decisório na empresa. Créditos: ZA/UM

Em particular na cidade em que o jogador se encontra, Revachol, os moradores costumam estar em constante conflito de interesse entre si, com frequente suspeita sobre os “outros”: pessoas de outra classe social, estrangeiros, policiais, você… E quase sempre os moradores da cidade parecem esconder algum segredo.

Assim como o conflito interno dos interesses do protagonista, tudo se passa como se a cidade representasse, externamente, o conflito entre os interesses da humanidade.

Desse modo, o protagonista poderá opinar sobre assuntos pessoais ou da cidade, embora muitas vezes também seja possível, se assim o desejar, simplesmente não emitir opinião alguma. Nesses momentos, é possível desfrutar de liberdade ética dentro do mundo ficcional. Claro, seus atos e opiniões poderão estar sob julgamento de outros personagens, em especial seu parceiro Kim Kitsuragi.

Pelo ensaio intitulado “Liberdade, Interação Ficcional e Mecânicas Morais em Jogos Eletrônicos”, podemos definir, em linhas gerais, o que seja uma “interação ética ficcional” em videogames. A saber: um caso especial de livre interação ficcional satisfazendo três critérios:

  • temática ética;
  • alternatividade efetiva de escolhas;
  • e variedade de efeitos para essas escolhas.

Todos esses critérios são satisfeitos em vários diálogos em Disco Elysium. Foi apresentado ainda, no mesmo ensaio, cinco principais mecânicas de interação ética. São elas:

  • coercitiva;
  • prática;
  • estetizante;
  • psicológica/sensibilizadora;
  • e, por fim, narrativa.

Para mais detalhes, confira o respectivo ensaio, mas o aprofundamento nesses assuntos não é um requisito para o atual texto. Apenas convém observar que, em Disco Elysium, especialmente em se tratando da relação entre ética e introspecção, há uma criativa combinação entre as mecânicas éticas de prática e narrativa. Abaixo, veja como elas aparecem no jogo.

Disco Elysium esforça-se para dar razões de prática (jogabilidade) e de narrativa (relativamente à história e aos diálogos) para o jogador fazer escolhas ética. Por exemplo: usar ou não drogas, mentir, furtar, desculpar-se, prestar ajuda, confortar alguém etc. O sucesso das ações exemplificas depende também da sorte aliada às habilidades físicas e mentais, além de convicções políticas.

Figura 7. Imagem de um momento de interação com o espelho do quarto. Créditos: ZA/UM

A depender do que você escolha momento a momento, isso poderá ter repercussão a curto, médio ou longo prazo.

Entre os impactos a médio e longo prazo na própria prática do jogador, destacam-se aqueles relacionados a uma mecânica particular — análoga à da série Fallout a partir da qual você pode “internalizar” pensamentos em seu Gabinete de Reflexão, treinando-os dentro de sua mente e, depois de um certo tempo, transformando-os em habilidades passivas ou atributos.

Figura 8. Imagem de uma das muitas ordenações possíveis de pensamentos internalizados no Gabinete de Reflexão do jogador. Créditos: ZA/UM

Ocorre que essa mecânica prática de RPG (do Gabinete de Reflexão) também relaciona-se, em Disco Elysium, com a mecânica narrativa de árvore de diálogos. Assim, do ponto de vista narrativo, para dar um exemplo de algo pouco impactante no enredo, evitando fortes spoilers, apenas considere a possibilidade de você, com frequência, pedir desculpas, se culpar ou se lamentar em muitos diálogos. Isso pode fazer com que você se descubra um “Tira Penitente”.

Esse e outros traços de personalidade mudarão não só o seu presente e o seu futuro na narrativa, abrindo diferentes caminhos para chegar ao final da história, mas também definirão o seu passado. Note que, como você perdeu suas memórias, reconstituí-las significa também recriá-las (dados certos limites), e cabe ao jogador determinar, ao menos parcialmente, qual é o passado do protagonista.

E outra consequência particularmente interessante da mecânica de descoberta e internalização de pensamentos é a de que também a interação narrativa pode variar, mudando certas falas e opções de diálogo com relação às suas faculdades mentais ou com suas partes do cérebro (sistema límbico etc.). A título de exemplo, isso ocorre quando está sonhando e refletindo sobre quem você foi, quem se tornou e o que os outros pensam sobre os seus feitos.

Figura 9. Imagem de uma conversa com Klassje. Na ocasião, a personagem reconhece o protagonista e diz ser o tira mais lamurioso do mundo. Entre as opções, há a possibilidade de consentir com seu julgamento ou ainda divergir e lembrá-la de outros pensamentos já internalizados, como de Tira do Apocalipse. Créditos: ZA/UM
Figura 10. Imagem do protagonista dialogando com partes do cérebro, como o sistema límbico, além de faculdades, como a Retórica e a Visão. Créditos: ZA/UM

Comentários Finais

Ao meu ver, Disco Elysium, lançado vinte anos após Planescape: Torment da Black Isle Studios, está à altura desse clássico, por muitos considerado “um manifesto do refinamento em texto, narrativa e roteiro, e do que esse tipo de mídia foi e seria capaz de criar”.

Podemos ressalvar que o jogador, em sua estadia em Revachol, pode encontrar algum desconforto com o tom (às vezes exagerado) e a extensão (às vezes longa) de alguns diálogos, frustrar-se com algumas rolagens de dados e não simpatizar com muitos personagens, em decorrência da proposta de geralmente defenderem posições extremistas.

Contudo, Disco Elysium, assim como o clássico que o inspirou, é claramente um dos principais exemplos do potencial artístico da mídia dos videogames para criar experiências ricas e únicas em um mundo ficcional a partir de criativas interações entre a mecânica/prática do jogador e a sua narrativa.

A quem esteja interessado em Disco Elysium, considero uma recomendação fácil para caso você goste de investigação criminal, RPG de mesa ou, em especial, que tenha desfrutado do clássico da Black Isle Studios.

Do mesmo modo, é altamente recomendável no caso de você ser um amante de literatura; especialmente por proporcionar, de forma muito bem escrita, uma rica e inovadora experiência ficcional híbrida e interativa de introspecção e reflexão moral que seria impossível de ser obtida em um formato literário convencional, como também espero ter conseguido mostrar neste texto.

Mas, e você que já experimentou Disco Elysium, o que achou do jogo? Um bom RPG? Gostou da interação narrativa? Da trama de investigação criminal? Das mecânicas de point-and-click? Das abordagens psicológicas, morais e políticas? Sinta-se à vontade para comentar abaixo, adorarei interagir com suas opiniões, resultantes de suas faculdades físicas e mentais. De todo modo, considerando que você já tenha jogado esse RPG da ZA/UM, espero que meu texto tenha-lhe ajudado, ao menos um pouco, no entendimento conceitual por trás do engenho mecânico-narrativo do jogo.

Muito obrigado por investir seu tempo nessa leitura!

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Vítor M. Costa

Brazilian historian and philosopher. Nintendo Blast (PT), SUPERJUMP (EN) writer. Here, I write gaming essays about what video games are and what they can do.