Imagem de Heavy Rain. Créditos: Sony Computer Entertainment

Liberdade, Interação Ficcional e Mecânicas Morais em Jogos Eletrônicos

Um ensaio sobre a dinâmica e a experiência éticas nos mundos ficcionais dos videogames

Vítor M. Costa
39 min readNov 29, 2020

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Nós todos fazemos escolhas, mas, no final, nossas escolhas nos fazem. (Andrew Ryan — Bioshock, 2K Games)

Quando há efetivamente o exercício da reflexão ética nos jogos? E quais mecânicas abrem essa possibilidade de reflexão para o jogador? Essas mecânicas possuem diferenças entre si para a experiência moral proporcionada ao jogador? Se sim, quais? E são elas diferentes daquelas experiências que alguém poderia ter em outros meios de expressão (cinema, livros etc.)?

À luz de conceitos da Ética e de uma análise comparada entre diferentes obras, neste ensaio abordarei as questões apresentadas acima por meio de uma análise dos aspectos éticos contidos na liberdade de escolha em jogos eletrônicos tal como proporcionada por árvores de diálogo, missões opcionais etc.

Com tal análise, demonstrarei que certas interações nos jogos não permitem liberdade de escolha para avançar na jogatina, e portanto não requerem reflexão ética. Contudo, mostrarei também que, em outros casos, o jogo permite ao jogador um certo número de escolhas para avançar, mas nem sempre sua liberdade é efetiva.

Especificamente quando a liberdade é efetiva, por vezes um jogo pode proporcionar apenas uma experiência “pseudo-ética”. Por outro lado, oferecerei algumas razões para se reconhecer que, em certas mecânicas, ocorre uma emulação parcial de uma realmente livre interação efetiva e ética nos jogos. Nessa direção, identificarei e comentarei cinco tipos distintos de mecânicas morais já adotadas na história dos jogos. São elas: mecânicas práticas, coercitivas, estéticas, narrativas e psicológicas.

Quer evoluir seu conhecimento sobre a história da moralidade nos jogos e aperfeiçoar seu entendimento sobre reflexões éticas? Então prepare-se para calcular alguns lances de dados e se aventurar por uma nova jornada! Nosso turno começará muito antes do advento dos videogames, em 1891, quando Oscar Wilde publicou uma versão revisada de seu famoso livro The Picture of Dorian Gray e, junto dele, uma introdução endereçada aos críticos da época com uma forte posição esteticista que influenciou gerações de artistas.

Depois, vamos para a década de 1980, com a popularização de jogos de mesa de RPG e com o advento de Zork e outros importantes jogos eletrônicos de aventura em texto (text-adventures). Nessa época, encontramos alguns dos primeiros casos de escolha para se avançar em um jogo (ainda que nem todos resultassem em escolhas efetivas).

Veremos a importância de escolhas efetivas e reações diferenciadas para a caracterização de reflexões éticas em videogames. Por fim, estudaremos vários exemplos tanto de experiências “pseudo-éticas” quanto de experiências “propriamente éticas” em diversos jogos no decorrer das próximas décadas, passando por jogos importantes e influentes na aplicação de temas e mecanismos morais, como as franquias Megami Tensei, Grand Theft Auto e Mass Effect.

Vamos começar nossa aventura?

- "It’s dangerous to go alone! Take this:"
Figura 1. Diagrama conceitual dos tipos de interações ficcionais em jogos de um ponto de vista ético
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Introdução

Neste texto, investigarei a ética e as mecânicas morais em jogos eletrônicos, especificamente em experiências não-cooperativas e não-competitivas, ou seja, exclusivamente em modo single-player, uma vez que relações éticas em multiplayer (seja cooperativo ou seja competitivo) tem implicações éticas de outra ordem, envolvendo interações não-ficcionais que não são específicas dos jogos eletrônicos.

Ademais, utilizarei os termos ‘Moral’ e ‘Ética’ como sinônimos para me referir ao âmbito dos julgamentos morais/éticos. Apesar de, em algumas análises filosóficas, ser conveniente distinguir tais expressões (BLACKBURN, 1997, p. 256), essa distinção não será necessária neste ensaio. Por sua vez, entendo por um julgamento ou juízo de natureza moral expressões que carregam prescrições acerca do que é o dever ou do que é certo/bom ou errado/mau.

‘Ética’ aqui é entendido como o estudo dos conceitos envolvidos no raciocínio prático (raciocínio para agir), como os conceitos de bem, ação correta, dever, obrigação, virtude, liberdade e escolha (BLACKBURN, 1997, p. 129). Dessa forma, uma “tese ética” ou “tese moral” consiste em uma proposta teórica para se refletir sobre “o que se deve fazer” em tal ou qual situação social da vida (ou da ficção, quando interativa), ou pelo menos em como lidar com ela.

Nesse sentido, vale observar que também personagens ficcionais podem atuar conforme alguma tese ética para emitir julgamentos morais. Para ficarmos em um exemplo, em um trecho do livro O Retrato de Dorian Gray (The Picture of Dorian Gray) de Oscar Wilde (2009, p. 45), Lord Henry (um dos personagem principais do romance) oferece recomendações ao jovem Dorian Gray para como viver sua vida. Na ocasião, Henry diz o seguinte:

Compreenda sua juventude enquanto a tem. Não desperdice o ouro dos seus dias, ouvindo aos tediosos, tentando corrigir a falha desesperançada, ou dando sua vida ao ignorante, ao comum, ao vulgar, que são os objetivos, os falsos ideais, de nossa época. Viva! Viva a maravilhosa vida que há em você! Não deixe que nada se perca sobre você. Procure sempre por novas sensações. Não tema nada. Um novo hedonismo — isso é o que nosso século deseja.

Nessa passagem, Henry mostra-se como um hedonista diante da vida, ou seja, alguém que defende que se deve optar, como regra, pelas coisas que nos dão maior prazer e não desperdiçar o tempo que pode ser utilizado ao próprio prazer. Assim, Henry propõe que se evite gastar o tempo convencendo alguém ignorante ou tentando ser respeitoso ao ouvir algo tedioso de outrem.

Para um um outro exemplo de conformidade ficcional a teses éticas, Ricardo Reis — um dos heterônimos de Fernando Pessoa — , bem como a personagem Lulu de Final Fantasy X (2001) da Square Enix, mostram-se frequentemente não como hedonistas, mas como estoicos, ou seja, alguém que assume um determinismo intrínseco na natureza em geral e no destino dos homens.

Por consequência, na ausência de escolha efetiva sobre a própria vida, nessa concepção estoica, a melhor postura diante de nossos atos e das vicissitudes na vida consistiria em compreender as coisas como elas são e manter nossa “vontade” (prohairesis) de acordo com o destino. A esse respeito, veja abaixo a pequena ode Cada um dos Poemas de Ricardo Reis e, logo abaixo, uma cena com uma fala de Lulu em Final Fantasy X:

Cada um cumpre o destino que lhe cumpre,
E deseja o destino que deseja;
Nem cumpre o que deseja,
Nem deseja o que cumpre.

Como as pedras na orla dos canteiros
O Fado nos dispõe, e ali ficamos;
Que a Sorte nos fez postos
Onde houvemos de sê-lo.

Não tenhamos melhor conhecimento
Do que nos coube que de que nos coube.
Cumpramos o que somos.
Nada mais nos é dado.

Figura 2. Cena de Final Fantasy X em que Lulu (personagem de vestido escuro) fala: “Você sabe, as mudanças mais importantes acontecem naturalmente e geralmente resultam melhor do que se você tentasse forçá-las”. Créditos: Square Enix

Por esses excertos, acredito estar suficientemente claro que em jogos, assim como em livros e outras obras ficcionais, ações e falas dos personagens podem refletir certas posturas éticas. E, eles próprios, personagens ficcionais, quando dotados de fala, são capazes de reproduzir julgamentos morais.

Uma pergunta diferente, porém, é se os jogos, os livros etc. são passíveis de julgamentos morais externos; ou seja, julgamentos morais feitos por quem aprecia essas obras (jogadores, leitores, espectadores…). Em outras palavras, são os jogos, livros etc. julgados pelo público como “pervertidos”, “benevolentes”, “certos”, “errados”, “injustos”, “justos”?

Veja que os adjetivos morais acima são muito diferentes de adjetivos estéticos, tradicionalmente esperados para obras artísticas; como “sublime”, “belo”, “feio”, “elegante”, “brega”, entre outros. Não me ocuparei aqui da questão de se é ou não legítimo (e, se sim, até que ponto) emitir julgamentos morais sobre jogos e outras obras, o que pode ser assunto para um outro texto.

Para esta análise é suficiente constatar que, sim, o público de jogos, tanto quanto de livros e outras obras ficcionais, tradicionalmente emite tanto julgamentos morais quanto estéticos, e não necessariamente em concordância. Ou seja, em uma mesma obra artística pode-se achar bela ou elegante uma ação cruel ou injusta e vice-versa.

Essa dissociação ética/estética tem a ver, geralmente, com o conteúdo de uma obra e a sua forma. A mim, por exemplo, parece injusta e desmedida a proposta de Lady Macbeth — em Macbeth (1611) de William Shakespeare — de assassinar Duncan, o então rei da Escócia, para que seu marido (Macbeth) assuma seu trono, mas acho bela a retórica com a qual ela consegue convencer seu marido na última cena do Ato I, particularmente não pelo que ela diz, mas como o diz. Confira um trecho traduzido de sua fala:

Estava então bêbada a esperança/ com a qual tu te vestias? Ela andava dormindo/ e desperta agora, com aparência tão doentia e pálida/ perante aquilo que tão livremente decidira? […]/ […] Tu tens medo/ de ser em ações e em coragem/ o que és em desejos?

Assim, havendo julgamentos morais sobre atitudes de personagens, cenas ou até obras como um todo, o que é importante destacar é que vários julgamentos morais em jogos ou livros, por exemplo, já ocasionaram muitos embates ao longo da história da arte. Isso de tal modo que vários artistas no decorrer da Era Moderna e Era Contemporânea procuraram afastar os julgamentos morais do mundo da arte para que tivessem maior liberdade de criação.

Nessa direção, seguirei, na próxima seção, comparando literatura e jogos eletrônicos a fim de conseguir apresentar certas peculiaridades da dinâmica ética em alguns jogos eletrônicos; dinâmica essa que, no final dest texto, receberá uma análise própria, separada das demais artes.

Polêmicas morais em jogos recentes

Em 1891, no prefácio à edição revisada (segunda edição) de O Retrato de Dorian Gray, Oscar Wilde, dirigindo-se aos críticos literários de sua época, escreveu:

Não existe algo como um livro moral ou imoral. Livros são bem ou mal escritos. Isso é tudo.

Tem mais de um século desde que a primeira edição de O Retrato de Dorian Gray gerou um escândalo na Inglaterra vitoriana, ao ser considerado, entre outras coisas, “piegas e nauseante” (mawkish and nauseous), “impuro” (unclean), “efeminado” (effeminate) e “contaminante” (contaminating). Seriam atualmente os jogos eletrônicos passíveis de receber semelhantes adjetivos? Ou poderíamos dizer que os jogos nas últimas décadas, assim como Wilde pensava acerca dos livros, são apenas bem ou mal desenvolvidos?

Figura 3. Cena de Bayonetta. Créditos: Sega

Do ponto de vista do público de jogos, é fácil ver que sim, ainda esses e muitos outros adjetivos de julgamento moral estão presentes nos comentários de gamers e comunicadores quando percebem algo, no design ou no gameplay, que remeta a temas polêmicos.

A título de exemplo, para o primeiro caso de design, podemos lembrar das diversas críticas morais de algumas feministas — como no vídeo-resenha de Feminist Frequency — acerca da sexualização feminina em Bayonetta (2010) da Platinum. E, para o segundo caso (de gameplay), podemos destacar as críticas morais levantadas sobre mecânicas em Bully (2006) da Rockstar que permitiam ações de vandalismo, graffiti, bullying, beijo gay, entre outras.

Figura 4. Imagem de Bully. Créditos: Rockstar

No caso de Bully, as mecânicas desenvolvidas pela Rockstar chegaram a ser discutidas nos tribunais, e o jogo acabou até sendo comercialimente proibido momentaneamente em vários países; dentre os quais, o Brasil, no Rio Grande do Sul, em decisão tomada pelo juiz Flávio Mendes Rebelo, por retratar

fundamentalmente, situações ditadas pela violência, provocação, corrupção, humilhação e professores inescrupulosos, nocivo à formação de crianças e adolescentes e ao público em geral.

Contudo, ainda que as críticas de natureza moral continuem presentes na recepção de jogos eletrônicos, e, ao meu ver, também na recepção de livros e outras formas de arte, isso não significa que a dinâmica e o tom das críticas não tenham sofrido mudanças.

Voltemos ao caso de Oscar Wilde. Na segunda edição de O Retrato de Dorian Gray (1891), o autor obscureceu o tema homoerótico em torno dos personagens Dorian e Basil, revisando várias passagens da primeira edição (de 1890), como, por exemplo, em

“Você não quer dizer que Basil tem alguma paixão ou romance nele?” / “Não sei se ele tem alguma paixão, mas certamente tem romance”, disse Lord Henry, com um olhar divertido. / “Ele nunca deixou você saber disso?” / “Nunca. Devo perguntar a ele sobre isso. Estou bastante surpreso ao ouvir isso.”

Por outro lado, cento e trinta anos depois, em 2020, a Atlus, desenvolvedora de Persona 5: Royal (2019), fez ajustes em diálogos antes considerados homofóbicos que haviam sido criticados pelos fãs das série. Em nosso tempo, uma crítica muito natural de se esperar para um jogo. Sobretudo no caso de seu antecessor, Shin Megami Tensei: Persona 4 (2008), ser reconhecido como primeiro jogo eletrônico a abordar enfaticamente o tema de aceitação da orientação sexual e ainda enfatizar questões sobre identidade de gênero.

Figura 5. Imagem de Persona 4 Golden. Créditos: Atlus
Figura 6. Imagem de Persona 4 Golden. Créditos: Atlus

É nítido o contraste entre as revisões de Persona 5: Royal (2019) e da primeira edição de O Retrato de Dorian Gray (1890) em relação à demanda do público dessas obras. Entretanto, isso não significa, como vimos por outros exemplos, que os julgamentos morais se extinguiram, e sim que mudaram; às vezes com novos alvos, às vezes com os mesmos (mesmo que nem sempre pelas mesmas razões).

Em 2010, por exemplo, o design sensual por trás da protagonista Cereza de Bayonetta causou muito mais barulho que a ousadia e a irreverência críticas com que essa personagem, uma bruxa, “cortava e massacrava” (hack and slash) criaturas angelicais usando conhecidos instrumentos de tortura outrora utilizados pela Igreja. Falo de instrumentos tais como a clássica “Dama de Ferro”, capsula com cravos de ferro que perfuravam o corpo do aprisionado (sem atingir seus órgãos vitais), fazendo-o perder sangue e agonizar por asfixia.

Figura 7. Imagem de Bayonetta. Créditos: Sega

Um século atrás, provavelmente tais mecânicas em Bayonetta — como também em Bayonetta 2 (2014) — resultariam, no mínimo, além de muita polêmica, também em muitos processos judiciais e forte censura. O que não foi o que vimos ocorrer com a série Bayonetta.

Mas, para além da diferença de época em que se inserem as novas críticas morais, há uma diferença significativa entre, de um lado, assistir ou ler uma cena ou trecho com determinada ação, como de um assassinato, e, por outro lado, jogar um jogo eletrônico que lhe dá a possibilidade de agir como um assassino (claro, dentro do mundo ficcional). É sobre essa diferença que me ocuparei na próxima seção, mostrando como a dinâmica ética nos jogos eletrônicos requer uma análise específica.

A dinâmica ética em interações ficcionais

Apesar de recente, a Filosofia dos Arte Contemporânea voltada para os videogames já possui alguns temas recorrentes, e um deles é o da definição de “jogo”.

De forma intuitiva e popular, a característica mais lembrada para definir jogos é a chamada “interatividade”, que consistiria em um fenômeno que pressupõe um meio que absorve certas ações (do jogador) e reage a elas de alguma forma.

Ocorre que essa caracterização aplicada aos videogames não é simples como parece, a começar pelo fato de que há outras obras de arte que também são interativas, enão só em um sentido amplo, mas intrinsicamente interativas. Um exemplo é a obra Você e eu de Zhang Zhahui que, em formato de quadro, possibilita o posicionamento de diferentes indivíduos para fotografias.

Na verdade, ainda não há um consenso sobre a definição precisa para “jogos”, atualmente são discutidas principalmente as seguintes propostas: propostas narratológicas, que procuram definir os jogos como casos particulares de experiências narrativas; propostas ludológicas, que definem jogos de modo independente (e nem sempre se referindo só a jogos eletrônicos); e, por fim, propostas interativistas ficcionais, que enfatizam o elo de interação que o jogador estabelece com personagens ficcionais e o mundo ficcional.

Mas, como esse assunto mereceria um ensaio à parte, e não tenho espaço para tratar adequadamente dele por aqui, vou assumir, ao menos parcialmente, e sem muitos rodeios, a proposta de Grant Tavinor (2009, pp. 25–33), que pende para um interacionismo ficcional, partindo do pressuposto de que os jogos eletrônicos, no geral, envolvem ação e reação com objetos ficcionais.

Não me refiro a quaisquer interações artísticas (como do quadro de Zhang Chahui) e nem sempre especificamente interações narrativas (que também estão presentes em certas obras literárias), mas frequentemente envolvem interações com objetos ficcionais. Por exemplo: ao mover um personagem, coletar ou mover certos itens, se localizar em um mapa ficcional, selecionar opções de diálogo etc. Tal caracterização, claro, depende de uma definição para “videogame”, a saber (TAVINOR, 2008; TAVINOR, 2009, p. 26):

X é um videogame se for um artefato em um meio digital-visual, se destina a ser um objeto de entretenimento e se destina a fornecer tal entretenimento através do emprego de um ou ambos os seguintes modos de engajamento: regra e jogabilidade objetiva ou ficção interativa.

Não entrarei em mais detalhes nessa definição de videogame ou na de interação ficcional em jogos eletrônicos e nem em suas dificuldades específicas frente aos outros dois tipos de propostas (narratológicas e ludológicas). Para um aprofundamento inicial no assunto, recomendo o segundo capítulo do livro The Art of Videogames de Tavinor.

Assumindo que ao menos a maior parte dos jogos envolve interação ficcional, então podemos assumir possíveis interações em videogames que envolvam relações éticas — ao menos emuladas — com certos objetos ficcionais, como, por exemplo, personagens humanoides e outras criaturas que tenham, no mundo ficcional, algo análogo a sentimentos, anseios etc. Havendo tal possibilidade, que interações seriam essas?

Basicamente, ao meu ver, e como defenderei a seguir, tais interações seriam casos de livre e efetiva interação ficcional. Em outras palavras, parece-me que há uma boa emulação de relação ética em um jogo quando:

  • há um mundo ficcional com objetos ficcionais interativos;
  • o jogador consegue interagir livremente com os objetos ficcionais, segundo certas regras;
  • e as opções de escolha do jogador são reconhecidas e diversamente efetivas naquele mundo.

Claro, essas condições merecem um mínimo de detalhamento.

Em primeiro lugar, o leitor deve-se atentar ao fato de que nem toda interação ficcional em um jogo é “livre”, ou seja, com alternativas. Na verdade, boa parte das interações ficcionais, nesse sentido, não são livres, porque não permitem que o jogador aja de modo alternativo para avançar na jogatina.

Em Resident Evil (1996), por exemplo, o jogador não é livre para avançar sem se encontrar com o famoso primeiro zumbi. Embora o jogador esteja em uma grande mansão, com uma escada à frente e várias portas, tanto no térreo quanto no segundo andar, você será impedido de ir a qualquer lugar com exceção da porta da esquerda (em relação à escada), os demais caminhos ou estarão bloqueados ou um diálogo o impedirá de prosseguir ou simplesmente terminará em uma porta trancada.

Figura 8. Imagem de Resident Evil. Créditos: Capcom

No começo de Resident Evil, você terá obrigatoriamente que seguir o caminho da porta da esquerda do térreo, avançar mais uma sala e invariavelmente se deparará com o primeiro zumbi do jogo, esse que também invariavelmente será o primeiro zumbi de todo jogador que vir a jogar esse Resident Evil.

Figura 9. Imagem de Resident Evil. Créditos: Capcom

Eis um exemplo de uma interação ficcional — posto que é impossível avançar sem a interação do jogador — , mas que claramente não é “livre” no sentido que expus acima. Por consequência, essa não-liberdade impede que haja relações “éticas” no mencionado momento do jogo (não necessariamente em todo Resident Evil).

Veja, digo não se tratar de uma relação ética não por ser uma “má decisão”, poderia ser a de cometer um assassinato ou qualquer outro ato que se considere ruim ou mesmo cruel. O que quero dizer é que, sendo um dada ação a única possível para avançar no jogo, ainda que dependente da interação do jogador, não há liberdade para que se possa falar em “ética”; afinal, não havia outra escolha possível.

No começo de Resident Evil, os personagens seguem determinadas teses éticas e até fazem julgamentos morais, mas o jogador, do outro lado da tela, segue no jogo como se, para utilizar uma analogia, estivesse a assistir um filme que dependesse meramente de que rodasse uma manivela para que uma cena se seguisse após a outra. Sem o rodar da manivela, o filme não prosseguiria, mas isso uma vez feito, no desejo de assistir ao filme, invariavelmente a sucessão de cenas será a mesma para qualquer um que assuma o seu lugar no trabalho de rodá-la.

Nesses contextos, os quais chamo de “interações ficcionais não-livres”, não é requerido do jogador deliberação para que o jogo siga, mas apenas ação e habilidade necessárias para executá-la.

Considerando a história dos jogos, o primeiro passo para o surgimento de uma interação ficcional pressupondo liberdade mesmo, no sentido de permitir alternatividade, foi reconhecer alternativas possíveis de ação, ainda que o jogo impedisse sua execução.

Para um exemplo, Zork (1980) — talvez o mais destacado adventure de texto — já era capaz de reconhecer certas alternativas do jogador, mesmo que algumas delas não fossem executadas. Entretanto, sempre reagia ao menos com algum comentário, às vezes até com certo humor, como quando o jogador tentasse ações inusitadas ou que implicassem suicídio. Veja um exemplo na imagem abaixo:

Figura 10. Trecho de uma jogatina de Zork em que o jogador tenta pular em uma pilha de folhas e tem como resposta: “Você espera que eu aplauda?”. Depois, o jogador tenta de várias maneiras tirar a própria vida. O jogo tem dificuldade de entender o sentido das ações do jogador, até que, por fim, responde: “Suicídio não é a resposta”. Créditos: Activision

Mas esse tipo de interação ainda não é livre do ponto de vista da execução das ações escolhidas. O passo seguinte para que uma interação ficcional seja “livre” é o de que o jogo não apenas reconheça alternativas de ação, mas as execute. Isso possa ser exemplificado pelo início de Metal Gear Solid (1998).

Na cena ilustrada abaixo, o jogador controla o personagem de traje escuro (Snake), o qual precisa chegar até o outro lado de um galpão para prosseguir no jogo. O galpão (como se pode ver no mapa do canto superior direito na imagem) possui três caminhos entrecruzados que levam até o outro lado, mas é vigiado por inimigos de roupa branca. O jogador possui várias alternativas para passar pelo guarda (com ou sem violência); um deles, atacá-lo quando desprevenido, mas também pode circundá-lo furtivamente, entre outras possibilidades.

Figura 11. Imagem de Metal Gear Solid. Créditos: Konami

Note que as escolhas, se executadas com sucesso, resultarão no mesmo fim: chegar ao outro lado do galpão. Nesse sentido, “liberdade” (ou “alternatividade”) não implica necessariamente que as alternativas do jogador tenham de levar a resultados distintos, mas implica ao menos diferentes modos de chegar ao objetivo.

No caso ilustrado, há apenas um fim, mas várias alternativas para chegar até ele. Qual o jogador deveria escolher? Em um momento como esse pode ou não envolver ética por parte do jogador.

Nesse ponto, estou fazendo uma adaptação, para a interação ficcional em jogos, de um aspecto importante do que, em Filosofia, chama-se “liberdade positiva”, em contraste com “liberdade negativa”, distinção que remonta a um clássico ensaio de Isaiah Berlin publicado em 1958.

Em linhas gerais, podemos dizer que alguém é livre, em sentido negativo, na ausência de coisas que impeçam o que quer fazer; por outro lado, alguém é livre, em sentido positivo, quando ele próprio está determinando seu destino (não necessariamente de modo absoluto, claro, podendo ser relativo a certas alternativas possíveis).

Aplicando para os exemplos acima, o jogador de Resident Evil que se dirige à porta da esquerda (em relação à escada) e continua o trajeto até encontrar o primeiro zumbi é, sem dúvida, livre no sentido negativo, pois nada no caminho o impediu de realizar seu desejo. Contudo, não é livre no sentido positivo, dado que seu destino sequer poderia ser outro para que ele tivesse poder de escolha.

Em contraste, o jogador de Metal Gear Solid (1998) que decida, por exemplo, atacar o inimigo que se aproxima quando ele estiver desprevenido e, depois de nocauteá-lo, seguir para o outro lado do galpão é livre no sentido positivo, dado que essa foi só uma das alternativas possíveis para chegar ao outro lado do galpão.

Por essa aplicação de liberdade positiva em jogos, identificarei mais à frente diferentes mecânicas em jogos que são utilizadas para reagir às escolhas morais dos jogadores, o que não é o caso da cena acima de Metal Gear Solid.

Relações éticas em jogos parecem requerer liberdade positiva e, portanto, alternativas reconhecíveis e executáveis, mas não significa que toda livre interação ficcional (nesse sentido positivo) pressuponha alguma relação ética. Esse é o caso de Snake na cena mencionada de Metal Gear Solid: trata-se de uma livre interação ficcional, mas sem implicações éticas reconhecíveis no jogo. Então o que falta para uma livre interação ficcional ter relação ética?

Em primeiro lugar, precisa se tratar de um tema ou ação de natureza ética e que assim seja reconhecido pelos desenvolvedores do jogo. Em segundo lugar, a ação deliberada pelo jogador precisa ser efetiva, ou seja, gerar algum efeito. Por fim, em terceiro lugar, as alternativas dadas ao jogador não podem levar ao mesmo efeito independentemente de qual for sua escolha. Em síntese, assumo que uma livre interação ficcional em jogos possui ética quando:

  • (I) há um tema ou ação em jogo considerado de natureza ética no mundo ficcional;
  • (II) há alternativas efetivas dadas ao jogador;
  • e (III) as alternativas dadas ao jogador não levam, todas elas, ao mesmo efeito ou reação.

Nos casos em que uma livre interação ficcional não satisfaz algum desses requisitos, ela pode ser, no máximo, “pseudo-ética”. Darei exemplos. Para começar, primeiro consideremos um momento de jogo que tenha as propriedades (II) e (III), mas não (I).

Considere a clássica cena de escolha de um Pokémon inicial. Por exemplo, em Pokémon Red/Blue. Nesse momento, o jogador pode optar por escolher entre: Bulbasaur, tipo planta; Charmander, tipo fogo; e Squirtle, tipo água. A depender da escolha do jogador, o NPC com o qual você troca diálogos, Professor Carvalho (Prof. Oak), não só irá reconhecer sua opção e responder a ela, mas também permitirá que você pegue o Pokémon escolhido.

Figura 12. Imagem de Pokémon Red/Blue. Créditos: Nintendo; The Pokémon Company

Eis um exemplo de livre interação ficcional contendo (II) e (III). O jogo (nesse caso, Pokémon), oferece um certo número de alternativas efetivas (nesse caso, três), mostra claramente ao jogador essas opções (reconhecíveis por diálogo) e executa a escolha indicada, levando a efeitos diferentes (i.e., cada qual levando a um Pokémon inicial diferente). Contudo, não há ação ética na escolha; não se haverá qualquer personagem prejudicado por sua ação.

Pode acontecer, porém, que um outro jogo permita certas ações consideradas, pelo público, de natureza ética, mas não reconhecidas no desenvolvimento do jogo. Nesses casos, como estou analisando as relações éticas de um ponto de vista interno aos jogos, apenas considerarei aqui relações éticas em livre interação ficcional quando forem estabelecidas no próprio mundo ficcional do jogo. Veja um caso paradigmático e muito influente a esse respeito:

Considere os jogos da série Ultima. Mais particularmente considere os jogos da série anteriores ao Ultima IV: Quest of the Avatar (1985). Segundo seu desenvolvedor, Richard Garriott, esses jogos não tinham mecanismos morais, no sentido de que os personagens na série (aliados ou inimigos) não interagiam com o jogador levando em conta que ele poderia fazer más ações.

Figura 13. Imagem de Ultima IV: Quest of the Avatar quando Lord British apresenta ao jogador as oito virtudes que ele, enquanto Avatar, precisa ter: honestidade, compaixão, valor, justiça, sacrifício, honra, espiritualidade e humildade. Créditos: Eletronic Arts

Somente após perceber que vários jogadores faziam ações indesejadas (como roubar em Ultima II (1981) ou matar inocentes em Ultima I (1982)), que Garriott, a partir de Ultima IV, passou a criar mecânicas morais, como, por exemplo, de punir o jogador caso decidisse praticar uma ação considerada moralmente errada e, por outro lado, dar incentivo para fazer ações consideradas corretas.

Deve-se notar, porém, que um jogo que contenha apenas (I), e não contenha (II) e (III), também não terá relações éticas. A razão é a de que uma ação não pode ser considerada nem boa nem má caso não tenha efeito algum no mundo ficcional; isso é, seja uma ação nula.

Considere, por exemplo, a tentativa de acertar, com um machado, um villager (NPC ou não) em Animal Crossing: New Horizons (2020) da Nintendo. Isso não lhe causará dano, nem recuo de posição e nem sequer qualquer comentário do NPC, será uma ação de efeito nulo e o jogo continuará como se nada tivesse ocorrido. Algo semelhante ocorre em vários jogos em que o jogador é acompanhado nos combates por NPCs aliados que não sofrem dano do jogador.

Agora, por sua vez, mostrarei um caso em que há as propriedades (I) e (II), mas não (III). Considere um dos momentos de The Walking Dead (2008) da Telltale, ainda no início, quando o jogador, controlando Lee Everett, conhece uma pequena garota sozinha em casa chamada Clementine. Após Lee entrar na cozinha, ouve a garota falar com ele. Nesse momento, há duas opções de pergunta:

  • “Você está segura?” (Are you safe?)
  • “Onde você está?” (Where are you?).
Figura 14. Imagem de The Walking Dead. Créditos: Telltale Games

Ambas as perguntas são semanticamente distintas, mas receberão a mesma resposta da garota (que satisfaz ambas): “Estou fora, em minha casa da árvore. Eles (os zumbis) não podem entrar.” (I’m outside in my treehouse. They can’t get in.). Após a resposta, independente de qual pergunta tenha feito, o jogo seguirá de forma idêntica.

Casos como o de The Walking Dead acima são pseudo-éticos. E situações “pseudo-éticas” podem ser classificadas da seguinte forma:

  • casos pseudo-éticos acidentais são tais como aqueles dos primeiros títulos da série Ultima, em momentos em que não é previsto que um jogador pode utilizar determinado recurso de forma maliciosa;
  • casos pseudo-éticos inefetivos são aqueles tais como o mencionado pela tentativa em vão de um uso violento do machado em Animal Crossing;
  • e, por fim, casos pseudo-éticos ilusórios são aqueles que oferecem falsas alternativas, isso é, um leque de opções que leva ao mesmo efeito, como no exemplo de The Walking Dead.

Finalmente, podemos ver, por contraste, um exemplo de cena de jogo com livre interação ficcional com relação ética; ou seja, uma cena que tenha as propriedades (I), (II) e (III) anteriormente elencadas.

Considere a clássica mecânica de escolha em Bioshock (2007) da 2K sobre as “Irmãzinhas” (Little Sisters ou Gatherers), particularmente nas ocasiões em que o jogador, ao encontrar alguma, precisa decidir entre resgatá-la do controle mental a qual está submetida ou colher dela um pouco de ADAM; substância valiosa no jogo para aperfeiçoar as habilidades do jogador.

Figura 15. Imagem de Bioshock. Créditos: 2K Games

O momento mencionado de Bioshock é claramente uma livre interação ficcional, posto que envolve ações e reações entre jogador e um personagem ficcional e há alternativas para as ações do jogador. Para além disso, essa interação envolve relação ética, pois contém as propriedades (I), (II) e (III) já mencionadas.

Em primeiro lugar (I), há temática e atividade considerada de natureza ética no mundo ficcional. Basicamente, o jogo considera moralmente correto que você opte por resgatar uma little sister. É argumentado, no decorrer do jogo, que elas são indefesas sem seu protetor (ou “paizão”, big daddy) e, além disso, inocentes, pois manipuladas mental e geneticamente.

Em segundo lugar (II), há alternativas efetivas, qualquer uma das duas opções mencionadas será reconhecida pelo jogo e efetivamente executada.

Por fim (III), as duas escolhas oferecidas levam de fato a efeitos diferentes. Efeitos diferentes a curto prazo, obtendo ou não uma certa quantia de ADAM; cumulativamente, a médio prazo (como recompensa por resgatá-las, a doutora Brigid Tenenbaum pode deixar alguns itens para o jogador em algum lugar do mapa); e ainda a longo prazo (levando, cumulativamente, a resultados diferentes da trama do jogo). Embora, vale observar, não seja necessário haver efeitos em diferentes níveis (como curto, médio e longo prazo) para que se estabeleça uma livre interação ficcional de natureza ética. Há um grande número de mecânicas morais com repercussões em apenas um ou dois desses três níveis.

Caso o leitor tenha curiosidade, abaixo trato um pouco sobre os níveis de repercussão ética (quando pontuais ou quando cumulativas), além de tipos de alinhamento moral. Por outro lado, caso o leitor queira continuar diretamente a reflexão sobre as peculiaridades da dinâmica ética nos videogames, avance para o tópico seguinte (o último antes da conclusão). Sinta-se livre para escolher.

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Alinhamento moral e repercussões (pontuais e cumulativas) a curto, médio e longo prazo

Em muitos jogos, principalmente aqueles que não são focos em um desenvolvimento profundo de mecânicas morais, há repercussões pontuais, sem grande efeito na trama ou na jogabilidade, e geralmente mostram reações a curto prazo e com um incentivo fraco.

Um bom exemplo a esse respeito aparece em um momento de Brothers: A Tale of Two Sons (2013) quando o jogador vê uma tartaruga adulta sozinha e alguns filhotes por perto; os quais estão longe dela, sem conseguir andar ou nadar. Na ocasião, o jogador pode, de modo totalmente opcional, desvirá-los e levá-los para a tartaruga adulta, tendo como única recompensa a aparente satisfação das tartarugas e um registro de conquista no jogo.

Figura 16. Imagem de Brothers: A Tale of Two Sons. Créditos: 505 Games

Em contraste, jogos eletrônicos, outras vezes, podem, ainda de modo pontual, não apresentar nenhuma repercussão a curto prazo, mas apresentá-la a médio ou longo prazo.

Figura 17. Imagem de Chrono Trigger. Créditos: Square Enix

Um bom exemplo é a repercussão de furtar o lanche de um idoso no início de Chrono Trigger (1995) da Square Enix. À primeira vista, esse furto pode parecer não acarretar nenhum problema, mas, em uma cena posterior, esse idoso reaparecerá na trama e sua efetiva reação surgirá. Mas as repercussões mais interessantes geralmente não são pontuais, mas cumulativas ou, como também chamadas, incrementais.

Repercussões cumulativas/incrementais, nesse caso, envolvem a possibilidade de um acúmulo de ações de natureza moral gerar efeitos futuros de médio ou longo prazo.

No exemplo acima, de Brothers: A Tale of Two Sons, a ação de ajudar as tartarugas não se acumula com outras possíveis boas ou más ações que o jogador faça para gerar efeitos no futuro do jogo. Já em Ōkami (2006), ajudar opcionalmente animais, como ao oferecer-lhes comida, resulta em pontos espirituais para o jogador. Esses pontos podem ser utilizados para aperfeiçoar o nível máximo de vida entre outros aspectos da economia interna da loba protagonista (Ōkami Amaterasu).

Figura 18. Imagem de Ōkami em que a loba protagonista do jogo oferece um pote de comida para um passarinho. Créditos: Capcom

Em outra comparação, enquanto no exemplo de Chrono Trigger há um efeito pontual a uma ação moral muito tempo depois na jogatina, um furto desse tipo certamente lhe renderia pontos do “lado negro da força” em Star Wars: Knights of the Old Republic (2003). Pontos esses que, cumulativamente, interferem nas habilidades do jogador, seus equipamentos e em vários aspectos do enredo.

Figura 19. Três imagens justapostas de diferentes estados de alinhamento com a “força” em Star Wars: Knights of the Old Republic. Créditos: BioWare

Note que as estratégias adotadas por Ōkami e por Star Wars: Knights of the Old Republic são muito diferentes, mas possuem em comum a ideia de possibilitar e explicitar o acúmulo de decisões éticas em uma certa direção. A possibilidade de acúmulo nas decisões éticas também aparece em Bioshock, porém não explicitamente; não há um sistema análogo de pontuação.

Quanto aos designs de acúmulos, há vários. Vale ressaltar, para começar, que a possibilidade de acúmulo nem sempre é “pluridirecional” (acúmulo para várias direções de alinhamento). Em Ōkami, por exemplo, você só pode avançar no sentido de receber mais pontos espirituais; não há como praticar más ações, somente lhe é dada a possibilidade de praticar boas ações ou simplesmente não fazê-las. Portanto, não há algo como “pontos negativos” de alinhamento como há em Star Wars: Knights of the Old Republic.

Ademais, no mencionado título da franquia Star Wars, pontos negativos e positivos no alinhamento são excludentes: receber pontos negativos (do lado negro da força) implica, inversamente, perder a mesma quantidade de pontos positivos (do lado da luz), de modo que se torna impossível, nesse jogo, ser, simultaneamente, um cavaleiro jedi da luz e também das sombras.

Em se tratando de um acúmulo pluridirecional, contrastando, portanto, com o design de Ōkami, não é óbvio assumir a premissa do universo de Star Wars, onde pontos de direções opostas no alinhamento são excludentes. Para um contraponto, na trilogia Mass Effect (2007–2012), também da BioWare, há escalas paralelas de alinhamento de moralidade com pontuações independentes para as escalas de “Modelo” (Paragon) e de “Renegado” (Renegade).

Figura 20. Recorte de imagem de Mass Effect 2 em que é possível ver barras independentes (em azul e em vermelho) de alinhamento moral em “Paragon” e “Renegade”. Créditos: BioWare

Em tal sistema de escalas independentes, uma “boa ação” (que dê pontos de Paragon) não compensará uma “má ação” (para Renegade) e vice-versa. Assim, se você for temido como assassino, por exemplo, nada de bom que você faça compensará essa sua “má fama”.

Outra consequência de tal sistema é que, avançando ambas as escalas, você pode ter acesso tanto a opções extras “boas” de diálogo quanto a opções extras “más”; entre outros efeitos possíveis que variam de um título para outro na trilogia.

O sistema da série Mass Effect torna-se ainda um pouco mais complexo em Mass Effect 3 (2012), onde há também pontos de “Reputação” (Reputation) que funcionam como um multiplicador de pontos de alinhamento (de Modelo ou Renegado), além de chamar mais atenção de NPCs do jogo e fornecer mais opções de diálogo, entre outros benefícios.

Figura 21. Imagem de Mass Effect 2 (2010) em que se vê algumas opções de fala. Dentre essas escolhas, há uma opção em azul dada ao jogador graças ao seu nível elevado de alinhamento “bom” (Paragon). Créditos: BioWare

Dado que um jogo disponha de diferentes parâmetros de moralidade, cada qual com uma escala independente, é possível cruzá-los também nos personagens ficcionais, caracterizando-os não só com “personalidade”, mas com algo que poderíamos chamar de “caráter”.

O caráter (seja ele fixo ou cumulativamente mutável) aplica-se tanto a personagens fictícios gerenciados diretamente pelo jogador quanto a NPCs ou a inimigos. A título de exemplo, confira abaixo algumas definições de caráter para personagens da série Dragon Age:

Figura 22. Um quadro combinatório de personagens de Dragon Age considerando alinhamento moral (bom/good ou mal/evil) e lealdade (legalista/lawful ou caótico/chaotic). Créditos: BioWare. Edição: Gamer28

Contudo, devo salientar, por fim, que nem sempre as ações possíveis de escolha moral oferecidas em um jogo são binárias, como em termos de “boa” ou “má”. Para mostrar isso, consideremos um exemplo de Dragon Age: Origins (2009).

Há, em seu mundo ficcional, momentos em que cabe ao jogador decidir apoiar ou não pessoas nascidas com habilidades mágicas que são, desde cedo, afastadas da família e presas em uma certa estrutura, o Círculo dos Magos.

Outro opção dada ao jogador jogador é apoiar os membros da Ordem dos Templários. Os templários são viciados e manipulados por drogas (de vários efeitos colaterais negativos) que os deixam imunes à magia a fim de conseguirem “vigiar” os magos do Círculo dos Magos. Tal “vigilância” dá um considerável poder à Ordem sobre os magos, levando ocasionalmente a acusações de tirania e abuso, já que o limiar entre proteção e opressão não é claro naquele local.

Por outro lado, é compreensível que certa “vigilância”, em alguma medida, seja necessária com relação aos magos, pois o uso da magia pode ser extremamente perigoso para as comunidades com habitantes que não sejam usuários de magia. Ademais, é indesejável que magias interfiram demasiadamente em conflitos militares, na política, na economia e em várias outras coisas que resultariam em desigualdade e/ou desvantagem diante dos magos.

Como resolver esse dilema?

Figura 23. Imagem de Dragon Age: Origins em uma conversa com templários a respeito do Círculo dos Magos. Créditos: BioWare

Outro bom exemplo de decisão difícil entre o que é “certo” ou “errado” encontra-se no mundo de ficção científica de Mass Effect 2 (2010). Mais especificamente quando o jogador precisa optar entre apoiar o desenvolvimento (por meios questionáveis) de uma cura para um vírus (a Genofagia) que faz com que haja uma probabilidade baixa de um krogan se reproduzir, impedindo que essa raça alienígena prolifere naturalmente.

Tal vírus foi manipulado e fortalecido propositalmente por outras espécies inteligentes a fim de impedir que os krogans se multiplicassem em alta velocidade a ponto de serem supostamente um perigo para outros planetas. Representantes de algumas outras espécies observaram que os krogans eram uma espécie fisicamente robusta e biologicamente propensa à violência, ainda que com raciocínio e sensibilidade bem desenvolvidos. Essa conclusão, junto do histórico de campanhas militares no passado, levou à decisão de criar a Genofagia.

Figura 24. Mass Effect 2. Créditos: BioWare

Em casos como esses, onde não há uma binariedade clara entre o “certo” e o “errado”, por vezes (e, infelizmente, só algumas vezes!) também não há um acréscimo de pontos de alinhamento moral. Todavia, não se deixa de requisitar do jogador, nesses momentos, também uma posição ética de algum tipo: estoica, hedonista etc.

De todo modo, seja qual for o sistema de interação ética adotado, esses são encontrados aos montes em vários jogos, especialmente em RPGs ocidentais e Graphic Adventures, havendo, em cada caso, diferentes repercussões de escolhas morais pontuais ou cumulativas de curto, médio e longo prazo.

Tais repercussões variadas podem, no limite, levar a finais diferentes do jogo e, em alguns casos, mesmo interferir na trajetória da sequência dessa narrativa em um jogo posterior, como é o caso na trilogia Mass Effect. Nessa trilogia, é possível importar o save de um jogo para o outro da franquia, continuando a história do ou da protagonista (Shepard) de acordo com as escolhas e repercussões no jogo anterior.

Mecânicas morais em jogos eletrônicos

Antes de finalizar este ensaio, gostaria, por fim, de mostrar algumas das principais “estratégias” que os desenvolvedores de jogos eletrônicos utilizam para que jogadores optem por serem “bonzinhos” ou “malvados”, além de outras possibilidades não-binárias, quando é o caso.

O que abordo a partir daqui envolve diferentes “efeitos de ações escolhidas”, tal como explicitei no âmbito dos videogames. Abaixo os tipos de estratégias de reação ética:

  1. interação ética coercitiva;
  2. interação ética prática;
  3. interação ética estetizante;
  4. interação ética psicológica/sensibilizadora;
  5. interação ética narrativa.

Destaco que tal enumeração não se pretende exaustiva sobre as estratégias possíveis e que elas não serão definidas de forma muito rigorosa.

Feito esse adendo, mostrarei a seguir, em linhas gerais, como os jogos eletrônicos podem oferecer experiências interessantes de interação ficcional que não são possíveis em outras obras artísticas convencionais, como em livros e filmes.

Alguns jogadores podem tomar como princípios pétreos que determinadas ações em jogos são “erradas”; como, por exemplo, a ação de tentar matar um personagem ou uma criatura que se mostre claramente inofensivo(a) e simpático(a) ao jogador. Contudo, claramente vários jogadores não seguem princípios éticos pétreos e optam por determinada ação dentro dos mundos ficcionais tendo em conta a utilidade, a beleza etc. Um exemplo clássico é o de usar o pobre Yoshi da série Super Mario como plataforma para alcançar um local mais alto.

Para incentivar que o jogador faça a ação “correta” ou para deixar mais realista as consequências de determinadas ações em sociedade ou ainda simplesmente por pura proposta criativa, os desenvolvedores de jogos podem estabelecer certas reações às decisões do jogador, censurando-o, coagindo-o, incentivando-o etc. A partir daqui mostrei algumas dessas reações.

Talvez a forma mais clássica de impedir que algum jogador faça uma escolha indesejada em um jogo seja por meio do que chamo “interação ética coercitiva”, que nada mais é que uma livre interação ficcional de natureza ética onde, a depender da escolha do jogador, seu personagem e/ou party pode ser diretamente prejudicado.

Figura 25. Grand Theft Auto: San Andreas. Créditos: Rockstar

Um exemplo clássico desse tipo de estratégia é o caso do jogador correr o risco de ser abordado, atacado, preso ou até morto por policiais nos jogos da franquia Grand Theft Auto (GTA). Nesse tipo de estratégia, o jogador, por não querer ser punido, evitará certas ações “más”, a não ser que ele possa enfrentar as punições sem maiores problemas.

Convém salientar, por outro lado, que, apesar do desenvolvimento de coerções no mundo ficcional, muitos jogos podem incentivar mais ações consideradas “ruins” do que “boas” fazendo, no dito popular, o “crime valer a pena”. Esse é o caso da franquia Grand Theft Auto, onde, desde seu primeiro título, de 1997, foi altamente criticado por tal efeito.

A Rockstar acabou incitando propositalmente mais controvérsias acerca da violência no jogo nos meios de comunicação a fim de promover seu produto (cf. KUSHNER, 2014, pp. 61–62). Em tal ocasião, o então publicitário da desenvolvedora, Max Clifford, não temia qualquer problema jurídico, pois o jogo carregava uma classificação indicativa para maiores de idade.

Vale observar ainda que as punições nos jogos podem assumir diferentes abordagens e níveis para se evitar que o “crime compense”. Porém, para que o jogador continue tendo poder de escolha para seguir a jogatina, essa punição não pode ser fatalmente intransponível, a menos que se trate de punir o jogador com uma forma negativa de encerramento do jogo.

Figura 26. Imagens de duas diferentes formas de encerramento de Karateka. Créditos: Broderbund

Esse foi o caso de um possível final do clássico Karateka (1984). Nesse jogo, o jogador, ao resgatar uma “donzela nem um pouco indefesa”, se, por descuido ou por malícia mesmo, estiver em posição de luta na frente da garota, receberá um chute fatal, encerrando o jogo imediatamente em uma espécie de “final ruim”.

Felizmente há várias outras formas menos óbvias e mais criativas de um jogo reagir às escolhas do jogador. Uma delas é por interação ética prática, no sentido não de punir ou recompensar o jogador, mas de oferecer simplesmente diferentes recursos práticos de jogabilidade a depender da sua escolha de ação.

Um dos precursores desse tipo de estratégia foi a série Megami Tensei. No decorrer da jogatina de Shin Megami Tensei (1992), por exemplo, o jogador controla um personagem (e, indiretamente, sua party, mutável no decorrer do jogo) que vive em um futuro próximo em Tóquio.

Nessa cidade, acidentalmente um portal é aberto para um reino de demônios por um cientista (Steven). O portal passa a ser mantido em segurança por um comandante militar (Gotou) a fim de propiciar a coexistência entre demônios e humanos, embora a tese seja controversa na opinião pública e leve os Estados Unidos a ordenar um ataque nuclear a Tóquio.

Após uma viagem trinta anos no futuro, o protagonista encontra a Terra arruinada pela invasão dos demônios, que agora é palco para um conflito entre a Ordem do Messias e o Anel de Gaia, cultos conflitantes que desejam realizar reinos para suas respectivas divindades padroeiras (YHVH e Lúcifer). A partir daí, a história é altamente influenciada por decisões morais que o protagonista toma, alinhando-o com um dos dois cultos mencionados ou ainda configurando-o como um agente independente.

Em sintonia com a possibilidade de coexistência entre demônios e humanos sustentada pelo comandante Gotou, Shin Megami Tensei permite que o jogador não só lute com determinados demônios, mas também converse com eles, eventualmente podendo persuadi-los a fazer parte de seu time ou ao menos a não ficar no seu caminho.

Figura 27. Shin Megami Tensei. Créditos: Atlus

Quando o jogador escolhe entre combater ou conversar com um demônio, as reações que receberá em troca normalmente não serão exatamente de “punição” ou de “recompensa”, mas simplesmente reações práticas, no sentido de que há vantagens e desvantagens. Evitar confronto com um demônio não dará experiência, mas poderá ser útil para não perder vida ou para conseguir um aliado (caso convença-o a ficar do seu lado).

Figura 28. Undertale. Créditos: Toby Fox

Fortemente influenciado por Shin Megami Tensei, o clássico indie Undertale (2014) leva essa mecânica moral ao limite, possibilitando que o jogador siga até o final do jogo sem precisar matar nenhuma criatura em seu caminho. Essa escolha não lhe renderá, porém, nenhuma experiência para, por exemplo, aumentar sua barra de pontos de vida, o que pode trazer algumas dificuldades.

Da escolha entre lutar até o fim ou ser misericordioso (mercy) o jogador não só terá experiências narrativas diferentes (inclusive finais distintos), mas também “experiências práticas” bem diferentes em gameplay, mudando completamente a própria dinâmica de batalha.

Passo agora para um outro caso peculiar de reação a decisões morais em videogames, o que chamo deinterações éticas estetizantes”. Trata-se de mecanismos em jogos cujas escolhas morais levam a mudanças estéticas significativas no personagem ou grupo de personagens que originou a ação escolhida.

Há jogos em que o personagem pratica determinadas ações, consideradas relativamente “boas” ou “más” no respectivo mundo ficcional, e, no entanto, tais ações com efeitos estéticos não podem ser outras.

Figura 29. Imagens do protagonista de Shadow of Colossus. Créditos: Sony Computer Entertainment

Em Shadow of Colossus (2005), por exemplo, a aparência de Wander, protagonista do jogo, vai mudando gradativamente à medida que o jogador derrota os colossi, mas isso, apesar de refletir uma escolha de Wander no mundo ficcional, não reflete uma escolha particular do jogador, uma vez que é impossível progredir na história de outra maneira.

Mas, diferente de Shadow of Colossus, em outros jogos, como Fable (2004), a mudança gradual de aparência segue escolhas morais do jogador. Tal efeito, em Fable, podendo, por si próprio, motivar o jogador a não querer praticar ações maliciosas ou, ao contrário, não querer praticar boas ações, a depender de seu gosto estético para o personagem.

Figura 30. sobreposição gradual de imagens de Fable de modo a mostras duas possíveis trajetórias de alinhamento do personagem principal. Créditos: Microsoft Game Studios. Edição: fable.fandom.com

Por sua vez, consideremos agora a mecânica moral de interação ética psicológica/sensibilizadora. Essa é uma das formas mais comuns de tentar convencer o jogador a não praticar uma má ação ou, ao menos, deixá-lo “perturbado” ao escolher ações consideradas cruéis no respectivo mundo ficcional.

Comentarei apenas um exemplo que emprega esse tipo de mecânica: Dishonored (2012). Apesar de Hideo Kojima ter desenvolvido mecânicas de furtividade (Stealth) na série Metal Gear em função de não gostar de jogos baseados em matar oponentes, os jogos dessa série não possuem fortes mecânicas morais atreladas à jogabilidade furtiva. Dishonored, por outro lado, dá um forte incentivo moral.

O incentivo moral de Dishonored vem do efeito “psicológico” ou “sensibilizador” para o jogador preferir não matar seus oponentes. A razão é que os oponentes, conforme a ficção, não atacam o jogador por livre e espontânea vontade, mas quando estão fora de si.

Nesse contexto, caso o jogador, controlando o protagonista da história (Corvo Attano), opte por matar muitos oponentes em suas missões, a jovem Emily Kaldwin, protegida pelo protagonista, terá uma diferente percepção sobre Corvo Attano e isso repercutirá, por exemplo, em seus desenhos.

Figura 31. Dishonored. Créditos: Microsoft Game Studios

Por fim, destaco a estratégia de interação ética narrativa. Trata-se da estratégia de jogos que reagem a escolhas morais do jogador com diferentes tramas narrativas, oferecendo diferentes desfechos para momentos de tensão no decorrer do enredo e até levando a finais distintos.

Um bom exemplo a esse respeito é o jogo independente Papers, Please (2013), onde o jogador personifica um agente de imigração de fronteira que analisa a documentação necessária para entrar em Arstotzka, um país fictício que lembra os países do Leste Europeu na época da Guerra Fria.

O jogador, preferencialmente de forma rápida (para receber um salário melhor), trabalha com base nas regras de imigração do dia e verifica os itens de imigrantes que devem estar de acordo com as regras de imigração. O jogador poderá interrogar no caso de documentação suspeita, permitir ou não a entrada no país e até mandar prender alguém, caso considere uma grave infração, pois entre eles encontram-se também traficantes e terroristas disfarçados.

Ao mesmo tempo, o jogador pode simpatizar empaticamente com certas causas individuais ou coletivas e deixar certas pessoas passarem pela fronteira. O jogador verá desde casos em que envolve a saúde ou segurança de alguém em particular até casos em que alguns imigrantes formam estratégias para derrubar o governo tirânico de Arstotzka.

A depender das escolhas tomadas no decorrer dos dias (várias das quais, de natureza moral), o jogo pode acabar de dezenas de formas diferentes.

Figura 32. Papers, Please. Créditos: Lucas Pope
Figura 33. Imagem de Papers, Please mostrando desde onde um o jogador pode continuar sua jogatina. Cada bifucarcação ou trifurcação entre as sequências de caixas representa pelo menos uma direção possível a um final diferente. Créditos: Lucas Pope

Nesse tipo de estratégia, presente de forma especialmente criativa em Papers, Please (2013), mas também usado de uma forma mais clássica em muitos Graphic Adventures, como em jogos da Quantic Dream, o jogador pode fazer uma escolha moral em função de julgar que resultará um desfecho narrativo mais interessante para a história.

O jogador pode ainda fazer certa escolha e depois retroceder para fazer outra, dado que esteja curioso para querer saber sobre o enredo geral do jogo ou simplesmente para saber o que aconteceria se sua ação fosse diferente.

Conclusão

Creio agora ser útil, antes de qualquer conclusão concreta, um breve resumo do que tratei até aqui. Comecei por fixar certos sentidos para termos como “moral”, “ética” e “juízos/julgamentos de natureza moral”. Além disso, vinculei esses termos ao conceito de “liberdade” e tipos de “teses éticas” que podem ser encontradas, por exemplo, em obras literárias e videogames.

Ainda na introdução, falei um pouco sobre a separação entre juízos/julgamentos morais, de um lado, através de conceitos como de “mal” e “justo”; e, de outro lado, juízos/julgamentos estéticos através de conceitos como de “belo”, “sublime”, “feio” etc.

A partir dessa dicotomia de julgamentos (moral-estético), comentei alguns casos polêmicos em videogames relacionados a julgamentos morais, comparando-os a polêmicas análogas na literatura do século XIX, especialmente no caso das versões original e revisada de O Retrato de Dorian Gray (1890/1891) de Oscar Wilde.

Na sequência, passei a analisar a peculiaridade da dinâmica ética em videogames, dinâmica essa marcada por uma forte interação ficcional raramente comparável a de outros meios de expressão artística.

Para tal análise, empreguei definições de “jogo” e “videogame” de Grant Tavinor, apresentei ainda uma forma de entender a “liberdade” nos jogos a partir da noção de “liberdade positiva” de Isaiah Berlin e defendi três critérios para caracterizar uma livre interação ficcional que seja considerada ética: (I) temática ética; (II) alternatividade efetiva; e (III) variedade de efeitos ou reações em relação às escolhas possíveis do jogador.

Nesse contexto teórico, apresentei ao leitor formas diferentes de conceber alinhamento moral nos videogames e diferentes níveis de repercussão das decisões tomadas, enquanto resultando efeitos pontuais ou cumulativos a curto, médio e longo prazo.

Terminei mostrando cinco tipos do que chamei de “mecânicas morais” em jogos eletrônicos, basicamente tratando-se de estratégias diferentes para motivar o jogador a fazer escolhas morais.

Os tipos que apresentei brevemente e ilustrei com alguns poucos exemplos foram de interação ética coercitiva (como na série GTA), prática (como em Shin Megami Tensei e Undertale), estetizante (como em Fable), psicológica/sensibilizadora (como em Dishonored) e narrativa (como em Papers, Please). Lembrando que esses exemplos não significam que cada jogo mencionado possua apenas uma dessas mecânicas morais.

Em Undertale, por exemplo, para além do desenvolvimento da mecânica moral prática de Shin Megami Tensei, possui uma boa dose de todas as outras mecânicas morais mencionadas, com exceção da estetizante. Neste jogo, afinal, é possível também chegar a caminhos narrativos e finais consideravelmente diferentes, a depender de suas escolhas morais, bem como há várias reações psicológicas/sensibilizadoras por parte das criaturas que povoam seu mundo ficcional e, às vezes, também reações coercitivas, como da reação de Sans (personagem célebre do jogo) em uma cena icônica, mais ao final do jogo, que o leitor, se já jogou Undertale, certamente lembrará.

Feito esse resumo, vê-se que o percurso trilhado veio desde a fixação de conceitos geraais para analisar o âmbito ético nos videogames e da comparação com outras mídias (como a literatura) até as especificidades nos videogames através das quais os jogadores podem ter experiências éticas únicas e bem interessantes sem paralelo em outras mídias.

Isso não significa, evidentemente, que ler O Estrangeiro (L’Étranger, 1942) de Albert Camus ou assistir a Dogville (2003) de Lars von Trier não propicie frutíferas reflexões éticas, e tampouco significa que a literatura, o cinema etc. concedam uma experiência ética “mais pobre” em relação a certas obras em videogames.

Procurei apenas mostrar que as ficções interativas nos jogos eletrônicos podem sim propiciar experiências éticas muito interessantes e particulares por mecânicas morais muito dificilmente análogas a experiências proporcionadas por outros meios de expressão artística.

Com tal conclusão, espero, por um lado, incentivar jogadores a explorar e refletir sobre a ética nos jogos e, por outro lado, incentivar quem não seja tão habituado a jogar, mas que goste de refletir sobre questões morais, a experimentar um pouco da criatividade e da imersão que os jogos podem proporcionar para aprofundar questões dessa natureza.

Por fim, vejo ainda este ensaio como um convite para mais reflexões sobre liberdade, ética etc. nos videogames, a começar por seu comentário. Com que critério você costuma tomar suas decisões éticas em um jogo? O que acha das polêmicas éticas nos jogos e na arte em geral? Concorda com uma separação radical entre ética e estética no julgamento sobre obras de arte? Em experiências com videogames, você costuma se alinhar mais para o “bem”, para o “mal” ou não gosta dessa binariedade?

De minha parte, apesar de preferir jogos sem um design explícito de alinhamento, confesso que, quando há, raramente escolho o “lado negro da força”. Eu estou entre aqueles 92% que optaram pelo “bem” (Paragon) na trilogia Mass Effect, para a tristeza dos desenvolvedores que investiram muito trabalho também no conteúdo Renegade.

E quanto às mecânicas morais? Você acrescentaria mais alguma além das cinco mencionadas? Há alguma favorita para você entre essas? De minha parte, confesso ter um apreço especial para criativas mecânicas práticas que interagem com escolhas éticas, tais como as presentes em Undertale, na série Shin Megami Tensei e, mais recentemente, em Disco Elysium (2019). E quanto a você? Sinta-se livre para escolher e opinar, saiba que aqui suas decisões são efetivas e receberão reações variadas.

Muito obrigado por investir seu tempo nessa leitura!

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Referências sem hyperlink

  • BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de filosofia. Tradução de Desidério Murcho et al. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.
  • KUSHNER, David. O Grande Fora da Lei: A Origem do GTA. Rio de Janeiro: Darkside, 2014.
  • ROLE Players (Temporada 1, ep. 3). High Score [Documentário seriado]. Título em Português: GDLK. Direção: William Acks, Sam LaCroix, France Costrel e Melissa Wood. New York/London: Great Big Story, 2020. Vídeo (45 min.). Disponível no catálogo online da Netflix. Acessado em: 30 out. 2020.
  • SHAKESPEARE, William. Macbeth. Edição bilíngue. Tradução interlinear e notas de Elvio Funck. Florianópolis: Editora da UFSC, 2006.
  • TAVINOR, Grant. The Art of Videogames. Oxford: Wiley-Blackwell, 2009.
  • TAVINOR, Grant. “The Definition of Videogames”. Contemporary Aesthetics, v. 7, 2008.
  • WILDE, Oscar. O Retrato de Dorian Gray. Edição bilíngue da primeira edição com prefácio a da segunda edição. Tradução de Marcella Furtado. São Paulo: Landmark, 2009.

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Vítor M. Costa

Brazilian historian and philosopher. Nintendo Blast (PT), SUPERJUMP (EN) writer. Here, I write gaming essays about what video games are and what they can do.